terça-feira, 26 de agosto de 2008

A freguesia do Porto da Cruz segundo o livro "Freguesias da Madeira"

Apresentamos em baixo a transcrição do texto sobre esta freguesia existente entre as páginas 139 e 142 da 2.ª edição do livro Freguesias da Madeira, da autoria do Tenente-coronel Sarmento (Alberto Artur), publicado em 1953 pela Junta Geral do Distrito Autónomo do Funchal.


Porto da Cruz


«NUM recanto de nordeste, protegido por arrogante pene­dia, abre-se uma pequena enseada, limpa, profunda, abrigo único que nesta parte do quadrante oferece a costa contra as iras insofridas do mar do norte.
Uma cruz de ferro afincada na rocha deu o nome ao Por­to da Cruz.

Vem imponente de além uma muralha de alterosos píncaros, cortam-se as vertentes em talhe duro, a prumo, e as escarpas rígidas como que desdenham da fúria oceânica a bra­mir injúrias, refervendo em escuma, porque a natureza lhe suprimiu, para este lado, as baías, onde se possa, espraiando, descansar.
E para temperar-lhe os exageros, servindo de tutela e guarda à formosa povoação do Porto da Cruz, ergue-se-lhe brutal e majestoso, um penedo enorme que se chama – a Penha de Águia, como se só as águias lá pudessem poisar.

Sublimidade de rocha que se destaca dos contrafortes, se isola por completo da cumieira geral, promontório de 600 me­tros de altitude, extático, à beira mar, é aquela tamanha eminência sombria.
Marco de formação antiga fez parte duma grande muralha destruída, o que prova bem que a ilha houve tempo em que ostentou muito maiores dimensões. Logo para nascente, afunila-se a Madeira no seu formato, baqueada talvez pela submer­são da base, no tempo das convulsões.
Porto da Cruz, pertencente à capitania de Machico, era no começo grossa fazenda de açúcares, boas matas e muitas águas e criava em abundância todo o gado manadio.
Sesmeiros foram ali muito nobres, alguns deles estrangei­ros, e as terras do Baptista recordam ainda o genovês Misser Baptista Uzadamori, parente dum dos descobridores das ilhas de Cabo Verde.
António Teixeira, neto de Tristão Vaz, donatário de Machico, teve copiosas terras detrás da ilha, e pela opulência de sua casa foi chamado rei pequeno. Fundou no Porto da Cruz a capela de Nossa Senhora da Piedade, uma das primeiras capelanias do norte, que foi elevada a freguesia com esta invocação.
Em 1580 foi doado uni terreno para a edificação dum tem­plo, passando a paróquia a chamar-se de Nossa Senhora de Guadalupe. A capela do Santíssimo foi vincular e mandada construir em 1765 por compromisso de Marcelino de Moura.
Continuou no entanto a antiga igrejinha de Nossa Senho­ra da Piedade, que durou até 1814, em que foi demolida por se achar em ruínas, sendo removido um antigo retábulo que ali existia para a igreja paroquial.

A capela de São João Nepomuceno foi instituída em 1776 por João Freitas Leal em sítio altaneiro que ficou sendo cha­mado o Lombo dos Leais. Um alvará de 1797 criou o curato desta freguesia já bastante povoada e com núcleos dissemina­dos, impondo ao cura a obrigação de residência nas proximi­dades desta capela de São João, que se tornava muito favore­cida, tendo mesmo especiais regalias, e que pretendendo ser sede da freguesia deu causa a dissenções graves, pelo que esteve interdita quatro anos.
Na Cruz da Guarda ficava uma capela dedicada a São Francisco Xavier; na Terra do Baptista houve a de Santo António, vínculo de Nunes Caldeira, e no Mirante, a de Nossa Senhora da Fé, de Dias e Vasconcelos.
Existe no sítio da Referta, que recorda uma pugna entre fidalgos, a capela de Nossa Senhora do Socorro, que primitivamente se chamou Nossa Senhora de Belém, morgadio de Moniz de Meneses, instituída por 1712.

Como porto importante da costa norte, Porto da Cruz teve o seu forte de defesa contra as sortidas dos corsários e as vigias para observar o mar. Militarmente, formava um dis­trito de ordenanças subordinado ao regimento de São Vicente.
Todo o vale do Porto da Cruz é de interesse geológico extraordinário pela desnudação das vertentes, deixando ver como se alternam ou irrompem as camadas estratificadas e os diques que as atravessam.
Ali se encontram as rochas mais antigas, sobre que assen­taram depois essas enormes torrentes de lava moderna.
A madeirite rocha muito rija, preta e branca é peculiar à Madeira, encontrada no ribeiro da Soca.
Na ribeira da Igreja observam-se as mais lindas formações de basalto colunar, como ruínas dum velho templo pagão, assi­naladas pelo povo com a pitoresca designação de Tem-te, não caias como se receando o seu desmoronamento.
Pela acção prolongada das chuvas caudalosas, perderam alguns conglomerados a sua consistência, transformando-se em argilas tenras que se encontram no ribeiro do Gabão, com pequenos cristais de bissulfureto de ferro.

O Pico do Forte, junto ao mar, coberto de barretes de assentadas sobre um núcleo de tufos sílico-calcáreos, guarda ainda as formas de uma antiga vegetação em que a matéria orgânica se acha eliminada. Ali se reconheceu a impressão das espécies Rubus e Carex arrastadas nas lamas para o fundo dum lago que devia ter existido na boca do Vale, prolonga­do até o Ilhéu.

Na sua vegetação florestal mesclam-se o folhado, a murta, a faia, o aderno, o azevinho. Teve mais, zambujeiros e marmulanos que são ao presente bem raros. Um manto verde no entanto galga aos topos, afogando as gargantas da serra e dos alcantilados sombrios que descem até a profundeza dos vales, onde a água rumoreja brandamente.
São vistas soberbas, fartas de enleio e pasmo, as obser­vadas dos espinhaços erguidos na penedia.

Nasceram nesta freguesia: – a madre Soror Catarina da Paixão de que falam as crónicas claristas, como freira de grandes virtudes, morrendo em cheiro de santidade; – e o Padre Caetano Soares, formado em direito pela Universidade de Coimbra e deputado pela Madeira às Cortes de 1826. Espí­rito liberal, ausentou-se para o Brasil no governo absoluto, e lá foi distinto letrado e exerceu importantes cargos, sendo advogado da Casa Imperial.
Desde o século XVIII que uma estrada de ligação rápida com Machico, pela costa norte, foi projectada, e iniciados os trabalhos que várias vezes foram postos de parte. Porto da Cruz tem sido abrigo das embarcações nos temporais do sul, recebendo os passageiros destinados à Madeira, quando o Funchal é inabordável.»

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