sexta-feira, 29 de agosto de 2008

Conto do bom adivinho, recolhido no Porto da Cruz

Seguidamente apresentamos a transcrição do interessante conto "Um bom adivinho", recolhido pelo saudoso Pe. Alfredo Vieira de Freitas na freguesia do Porto da Cruz, e publicado entre as páginas 71-73 do seu livro Continhos Populares Madeirenses, editado no Funchal em 1988:


UM BOM ADIVINHO

«Havia um certo senhor muito rico que possuía tantos bens e riquezas que nem sabia quanto tinha de seu.
Ora um dia, ao abrir o cofre, encontrou-o tão vazio de dinheiro como cheio estava de ar. Saltou-lhe o coração e a boca ficou aberta... Mas, rea­gindo imediatamente, jurou vingança a quem ele descobrisse ser o ladrão.
O caso foi que se passaram alguns dias e o senhor nem por sombras conseguia suspeitar de alguém... Foi por estas alturas que numa manhã, quando passeava pensativo pelo jardim, viu e encontrou à distância, um homenzinho que pendia com a cabeça, ora para um lado, ora para outro...
— Oh! que faz aquele homem? será magia? E se ele me adivinhasse o ladrão?!...
E, pensando nisto, aproximou-se...
O homenzinho, coitado, estava cheio de fome e mal se sustinha em pé. Simplesmente sentara-se ali à espera do seu fim...
— Ouve lá! — abordou-o o ricaço — És capaz de descobrir quem me roubou? Dar-te-ei hoje três refeições e, se à noite não me responderes certo, morrerás, se for ao contrário, ficarás rico!...
O homem pensou: — morrer por morrer, pelo menos, sempre me farto! — e acedeu à proposta...
Foi, portanto, para a casa do senhor e foi encerrado num quarto. Logo se lhe chegou um criado com o comer. O homem pegou no prato e disse num suspiro: — Graças a Deus, à conta de três, já veio um! ...
Espavorido, correu o criado para a cozinha e contou aos colegas:
— Sabem vocês? Estamos todos perdidos; ele já adivinhou que fomos nós os ladrões: ele disse logo que me viu: — «À conta de três já veio um!»
— Desconfio muito — disse um outro —, mas sempre quero vê-lo e levar-lhe-ei a outra refeição.
E novamente, à hora do almoço, o homem pegando no prato, suspirou:
— Graças a Deus, à conta de três, já vieram dois!...
— É verdade, é verdade, ele já nos adivinhou!
— Qual carapuça? — disse o terceiro — Para a próxima vez irei eu. E outra vez a mesma frase diabólica:
— Graças a Deus, à conta de três, já vieram todos...
— Ó homem! — suplicou o criado de joelhos — por favor, te pedimos, que não nos descubras, nem digas que o dinheiro está metido na lareira. Dar-te-emos muito dinheiro; tem compaixão de nós!
— Ah! sim! Gostei muito de saber quem foi... Estejam descansados que não me vou deixar matar por causa de vocês... Já te podes ir embora...
Momentos depois, entrou o senhor:
— Então? Já sabes quem foi?
— Sei, sim. Foram os vossos criados.
— Estás doido?! Os meus criados tão dignos de confiança que eles são?!
— Foram os vossos criados e o dinheiro está metido em qualquer canto de lareira...
Investigadas as coisas, encontrou-se de facto o dinheiro na lareira.
Contente por ter readquirido o dinheiro roubado, vinha o senhor da cozinha para premiar tão grande adivinho. Mas ainda o quis pôr mais à prova. Passando junto da carne de porco esquartejada, para ser metida na salgadeira, escondeu o rabo do porco na mão e perguntou-lhe:
— És capaz de dizer o que tenho na mão? O homem coçou a cabeça, já se vendo perdido:
— Agora é que «a porca torce o rabo»… – disse entretanto.
— É verdade, e é de porca… Reconheço que de facto és um grande adivinho; aqui tens a tua paga. Adeus!
Já ia o homem todo contente da vida, quando o senhor, apanhando um grilo, o chamou:
— Ouve lá! e que tenho agora na mão?
Só faltava mais aquele contratempo! O «adivinho» chamava-se, por sorte, Grilo. Passou as mãos na cabeça e disse todo desanimado:
— Ai Grilo, que morres agora!
— Caramba! Ganhaste! é um grilo!…
Outra vez mais, já ia pelo caminho e o senhor, fechando a mão, ainda lhe gritou de longe:
— E que tenho agora na mão? — Agora não importa «mais nada»!
E foi assim que o Grilo caminhou para uma vida de fortuna e abun­dância, enquanto lá atrás o rico, novamente espantado pela resposta, dizia para consigo:
— É fantástico... eu não tinha «nada» na mão!
E agora não nos venham dizer que quem adivinha vai para a porta da Sé...

Recolhido no Porto da Cruz»

Sem comentários: